sexta-feira, 20 de maio de 2011

O acaso do encontro

Acredito não ser nenhuma novidade, mesmo para os que não são da área, que o grande barato do teatro enquanto linguagem é o fato dele ser ‘ao vivo’, ou, como nos artistas gostamos de dizer, do teatro ser a arte do encontro entre os corpos, sem intermediários. Assim como a literatura se articula entre as palavras, as artes visuais nas cores, formas e volumes e a música na relação rítmica entre som e silencio, o teatro existe quando dois ou mais seres humanos compartilham o mesmo espaço/tempo.
Pois bem,  por mais que esta convenção da linguagem seja clara para todos (suponho eu), arrisco afirmar que nem sempre, porem, levamos em conta o que isso realmente pode gerar. Ao se firmar sempre na imprevisibilidade caótica do momento presente, o teatro se estabelece tanto num pacto criativo gerado entre todos os participantes (artistas/técnicos/plateia) quanto sob a influencia de fatores ou forças invisíveis que ultrapassam este pacto e põem em risco constante o próprio acontecimento. Preciso esclarecer que não me refiro aqui a nenhuma força mística ou transcendental e sim de um inivisível que tem uma materialidade, um invisível concreto e potente. Refiro-me a força que tem o acaso.
Sim, porque no teatro tudo pode falhar a qualquer momento! Por mais que todos ajam na direção do êxito e da comunhão, sempre se estará jogando também com toda sorte que aspecto ‘ao vivo’ da linguagem possibilita. Estaremos no teatro sempre sujeitos ao acaso e no risco que a vida nos oferece. Suponho, inclusive, que muitos artistas da cena são mesmo é viciados neste risco fascinante de se jogar no vazio criativo do encontro - por mais que eu tenha me preparado, por mais que haja ensaio, treino, laboratório ou que for, tudo pode ‘falir’, ‘dar errado’, a piada pode não funcionar, o choro pode não rolar, a plateia pode dormir ou ir embora, o técnico esquecer de apertar o play ou fazer a transição de luz do momento certo e deixar a cena escura etc. E, como se não fosse suficientemente complexo lidar com todas essas possibilidades, para além de tudo o ‘que pode acontecer’, ha ainda todo o imponderável, todo o ‘impossível’ que também pode ‘dar as caras’ e aparecer para afetar a cena. Sim, porque como estamos no território da arte todo o impossível é também real e existe. Entre o segundo antes do inicio e o instante final tudo o que acontece no teatro é atravessado por esta instabilidade radical.
Ciente disso, gosto mesmo de pensar que essa instabilidade caótica é o teatro, é nela que ele se manifesta, e que nós, artista da cena, devemos dedicar muita atenção em nossa formação a ela. Mas, como podemos esta preparado para acaso? Como saber jogar com ele? Como transformar o acaso em aliado? Como transformar um possível ‘erro’ em um novo momento potente e ‘acertado’ para nossos objetivos?
Claro que muitas respostas são possíveis para estas perguntas e que cada espetáculo encenado ate hoje é, numa certa medida, uma tentativa de achá-las.
Quem esteve no teatro do sesi, no dia 29 de abril de 2011, assistindo a apresentação de “Devassas”, pode participar de um momento especial onde o acaso mostrou sua força e esse sentido de rito compartilhado da arte do encontro se fez presente.
Foi assim: mesmo com uma inesperada queda da energia do prédio, num escuro total ainda ha 20 minutos do final do espetáculo, a atriz Ivana Iza e sua equipe jogaram tão bem com as forças invisíveis do acaso (e, diga- se de passagem que neste caso eram invisíveis mesmo porque o breu foi geral rs) que o espetáculo não apenas chegou ao seu final, mas também gerou em todos os presentes uma sensação muito especial de extasse pelo desafio ‘vencido’ coletivamente.  Ali, fizemos teatro. Juntos. E saímos com a certeza de que jamais alguém veria o que nós vimos; foi único e efêmero.
Do meu ponto de vista, de diretor do espetáculo, foi muito bonito de ver os técnicos seguindo Ivana com sua lanternas enquanto ela, numa presença sensível, corajosa e inteligente, ia descobrindo passo a passo junto com a plateia o que o acaso tinha a nos ensinar naquele momento. E quanta coisa havia para aprender ali naquela escuridão.


Flávio Rabelo

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